PRAZER DE VIVER
Wanderlei de Oliveira p/espírito de Ermance Dufaux Ed. Dufaux Capítulo 15
ONDE ESTÃO OS ESPÍRITOS SUPERIORES?
"Com extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da Doutrina se...não gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à emissão de uma idéia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo, e tudo ainda hoje não disseram".
- O Evangelho Segundo o Espiritismo, introdução, Controle Universal do Ensino dos Espíritos.
Antero Gomes, doutrinador esclarecido e dedicado, desencarnado em Minas Gerais, na década de 90, pediu-nos o obséquio de enviar sua experiência aos amigos domiciliados a Terra. Conforta o saber que suas palavras poderão ser úteis a quantos dialogam com os desencarnados.
Após trinta dias no Hospital Esperança, foi encaminhado aos cuidados do doutor Inácio Ferreira, responsável pela ala de médiuns e doutrinadores.
Doutor Inácio fazia suas preces matinais, quando foi interrompido por batidas na porta de seu gabinete.
- O senhor é o doutor Inácio Ferreira?
- Em "carne e osso", digo, em espírito e perispírito - disse com muita espontaneidade.
- Meu nome é Antero Gomes.
- Já o esperava.
- Sempre desejei conhecê-lo na Terra, mas o tempo não permitiu.
- O senhor perderia seu tempo, posso lhe garantir. Vamos, entre e sente-se aqui. Vamos falar sobre planos de trabalho. - Sim. Quero começar dizendo o que pretendo fazer, doutor Inácio.
- Não, o senhor me desculpe. Aqui sou eu quem vai dizer o que fazer.
- Então não tenho livre-arbítrio? É isso?
- É!
- Explique melhor doutor Inácio! Será que depois de uma encarnação servindo e trabalhando terei direito a escolhas por aqui?
- Não. Sua ficha diz que o tutor de sua encarnação fez o que pôde.
- Fez o que pôde?! Para quê?
- Para ensinar-lhe a fraternidade pura sem fronteiras. Não poderá escolher muito por aqui.
- Mas ...
- Eu sabia que logo apareceria esse "mas”... Tenho estudado com cuidado a sua ficha há uma semana, senhor Antero. Apenas posso lhe adiantar que seu tutor, diga-se de passagem, uma alma muito acima de nós, pediu-nos para não lhe satisfazer mais os gostos.
- Não entendo!
- O senhor entenderá.
- Muito estranho! Jamais imaginei que algo semelhante poderia me ocorrer aqui.
- Esperava regalias?
- Não. Esperava no mínimo a amizade e o reconhecimento, como tinha dos companheiros no Centro Espírita. Sempre me apoiando.
- Seus amigos te suportaram, Antero. Com seu personalismo e conhecimento tiveram de se render à sua influência.
- Engano seu doutor Inácio! Além de rude, não sabe o que fala! Alias, vejo que, para um espírito superior, o senhor anda bem desinformado.
- Espírito superior! Bom, depende com relação a quem...
- Faça uma visita ao centro que dirigi e verá o quanto sou querido.
- Já fiz Antero, já fiz! E sei o que estou falando. Você verá com seus próprios olhos.
- Quero saber a razão dessa recomendação. Virá mesmo de meu tutor ou é idéia sua doutor? Terei deixado mesmo de aprender fraternidade? Muito estranho!
- Tenho um palpite ... - falou doutor Inácio, como a provocar uma pergunta.
- E qual é?
- Creio que os espíritos superiores andam meio "cansados" do senhor, e por isso o mandaram para mim. Não fosse assim, o amigo não pararia aqui nesse nosocômio. Estaria bem "acima".
- Chega de brincadeiras doutor Inácio! O senhor brinca em excesso - falou Antero com irritação.
- E o senhor é sério demais. Qual de nós terá razão? Começaremos o trabalho hoje à noite mesmo. Visitaremos um Centro Espírita. Uma sessão mediúnica.
- Ótimo. Então quero voltar ao centro que dirigi saber de tudo.
- Não.
- Não! Por quê?
- Porque foi exatamente essa a orientação que recebemos: não lhe satisfazer gostos.
- Mas que mal há nisso? Rever amigos, ampliar minha visão sobre a mediunidade.
- Esse é o problema.
- Novamente, não entendi!
- O senhor foi excelente doutrinador. As notas de sua ficha, no entanto, falam em rigidez de conceitos e acusação. Aquilo que escapulia do padrão de seu entendimento era alvo de suas críticas ou de sua atitude de indiferença.
- Um direito que me assiste. Não tenho obrigação de aceitar as adulterações ao pensamento espírita. O senhor não concorda?
- Quanto a isso, eu concordo. Daí a ter de desprezar e mal dizer pessoas e tarefas...
- Apenas defendia a pureza de nossos princípios.
- É sempre assim! Os "puristas". Amam a doutrina e deixam de amar o objeto moral de valor da própria doutrina que tanto amam, isto é, o próximo.
- Doutor Inácio, o senhor vai ficar me criticando também?
- Vou. Essa é minha tarefa.
- O senhor não acha que sua sinceridade é ofensiva demais? Se vai me criticar, então o senhor está igual a mim.
- Engano seu. Eu pelo menos faço isso olhando nos seus olhos. O senhor, o que foi que fez?
- Quer saber? Vou ser muito franco!
- Seja.
- Não estou gostando nem um pouco de nosso encontro. Sua rudeza me incomoda.
- Ótimo, então está dando tudo certo.
- Então o que o senhor deseja é me incomodar?
- Não. Isso, porém, já lhe servirá para sentir o que muita gente sentia em relação a suas atitudes de soberba intelectual e desprezo sutil.
- É demais! Depois de tudo no corpo ainda encontrar essa espécie de tratamento neste plano.
- Não viu nada! Como disse, sigo as orientações de sua ficha. O senhor já teve gente demais para ser conivente e bajular. Precisa mesmo é de um doutor Inácio na sua vida.
- Não sei como Eurípedes permite uma coisa dessas em uma casa de amor.
- Em verdade, o senhor não sabe muita coisa. Mais do que imagina. Vamos indo. Chega de lengalenga. Vamos visitar o centro de Antonio Crisostomo - falou doutor Inácio usando toda sua influência magnética para "arrastar" Antero ao trabalho.
- O quê? Nem pensar, pois não entro lá!
- Posso saber a razão?
- Aquele lugar, de centro Kardecista só tem o nome. É uma miscelânea de última qualidade.
- Então é esse que precisamos.
- Eu não quero ir.
- Se o senhor não for, só lhe resta uma alternativa: pegar uma vassoura e limpar o pátio do Hospital. O que o senhor prefere?
Já passava das dezenove e trinta horas quando doutor Inácio, Antero e mais alguns auxiliares chegaram a Centro Espírita Discípulo da Nova Luz. As luzes foram apagadas e a sessão começou ativamente sob orientação de Antonio, experiente e amorável condutor da reunião no plano físico.
- O que você vê, Antero?
- Sinto-me mal com tantos excessos.
- Que excessos?
- Veja se os médiuns precisam grunhir como porcos! Olhe aquele lá, babando a ponto de sujar a própria roupa. E aquela senhora de idade rolando no chão?! É muita deseducação mediúnica. Nem usam mesa, assentam-se ao chão, não usam sapatos, e veja o dirigente! Não pára de estalar os dedos e cantar hinos de umbanda. É uma salada de doutrinas. O Espiritismo passou longe disso aqui. E ainda tem mais, o senhor, por acaso, está vendo alguma entidade? Algum espírito superior? E pior, quem será beneficiado com tanto ritual? É pura falta de esclarecimento. Certamente trata-se de uma sessão de descarrego anímica.
- Excelente crítica, Antero!
- Não é crítica, é a verdade. É o que estou vendo ou será que o senhor, doutor Inácio, não enxerga?
- Meus óculos, amigo, ficaram na Terra. Depois que faleci enxergo mais que devia. Enxergo, por exemplo, o que o preconceito fez com você. A acusação é um grilhão mental infeliz. Pesa muito nos ombros enquanto se tem corpo e tira a visão depois da morte. Vamos voltar ao Hospital.
- Vamos mesmo, pois vou fazer uma queixa formal a Eurípedes sobre todas as suas atitudes doutor Inácio, desde hoje de manhã.
- Já esperava por isso. É sempre assim. Voltemos.
O doutrinador expôs a Eurípedes suas queixas. O benfeitor o ouviu com paciência e pediu-lhe que aguardasse nova tarefa. Passaram-se três semanas e Antero começava um quadro de angústia e solidão preocupante. Procurando novamente o diretor do nosocômio, Barsanulfo o orientou:
- Irmão Antero, essa angústia é pedido profundo da alma por trabalho e libertação. Tenha força para superar seus conceitos e tendências. Doutor Inácio é uma alma sincera, cumpre uma tarefa muito valorosa nesse nosocômio. É tudo que você precisa por agora: quem lhe diga o que pensa. Na Terra, ninguém lhe dizia o que pensava. Sabiam que não seriam ouvidos...
Após dois dias da conversa com Eurípedes, Antero Gomes procurou o gabinete do doutor Inácio.
- Estou de volta doutor Inácio. Vamos retomar ao labor.
- Retomar não, continuar. Seu afastamento era previsível, portanto, é continuação com mais consciência.
- Desculpe minha atitude.
- Não fui ofendido. Aliás, isso é algo bem difícil de acontecer a meu pobre ser.
- O senhor sempre foi tão direto assim?
- Quando no corpo era um pouco pior. Aqui já melhorei bastante.
- Não compreendi ainda doutor Inácio, a razão de estar sob suas ordens.
- É simples!
- Simples?!
- Lei de merecimento.
- Explique melhor doutor!
- O senhor não foi um homem mal para merecer as regiões sombrias da dor, mas também não foi um homem que fez todo o bem que podia. Não core de vergonha, a minha situação é a mesma. Evitei o mal intencional, fiz o bem para os outros e para mim mesmo fiz muito pouco. Fui atrevido e intolerante, centralizador e, muitas vezes, excessivamente divertido. Para ser sincero, um zombeteiro.
- Não é o que dizem do senhor na Terra. Seu nome é lembrado como um vulto do Espiritismo.
- Vulto ou assombração?! - falou com seu velho tom de humor.
- Um vulto respeitado.
- Esse o problema. Os espíritas adoram canonizar quem fez algo para ser lembrado. Não que tenha alguma coisa contra, mas daí a me ver como vulto, vai boa distância. Quando chegarem por aqui, perceberão que, com raríssimas exceções, os vultos do Espiritismo são almas com necessidades comuns. se algo fizeram de especial, foi apenas trabalhar um pouco mais que os demais. A grande maioria, e sei o que digo, "varreu necessidades para debaixo do tapete". E agora a morte levanta os "tapetes", sacode a poeira e, com muita complacência, coloca-nos na mão uma "vassoura" para recomeçarmos o serviço nesse plano.
- Afinal de contas, quem são os espíritos superiores neste lugar?
- Os que toleraram nossas loucuras. O que qualifica uma alma como superior é a compaixão.
- Desculpe a franqueza, mas até agora não distingui se a sua conduta é inteligência, mau-humor ou rigidez.
- Não tenha dúvidas, são os três! Vamos fazer uma nova visita.
- Aonde vamos?
- Não é aonde. É quem vamos ver.
- Quem?
- Quer conhecer seu tutor?
- Adoraria. Mas como sei que meus gostos não vão ser...
- Engano seu! Esse gosto vou lhe satisfazer a pedido dele.
- Em que região superior vamos encontrá-lo?
- Não é região superior.
Após os preparativos, partiram os dois em companhia de uma caravana socorrista às regiões abismais. Antero sofreu os lances do caminho. Amparado devidamente suportou o clima e as lutas do local. Chegando a certo ponto:
É aqui - disse doutor Inácio, em estado de profunda concentração.
- E onde está meu tutor? - atalhou o doutrinador.
- Venha. Vou lhe mostrar.
- O que é isso?
- O que você vê, Antero?
- A mesma cena do Centro Espírita Discípulo da Nova Luz.
- Vá narrando.
- Espíritos babando. Trabalhadores estalando dedos. Almas rolando de dor no chão fétido. Retirada de objetos do perispírito das entidades e ... Que é aquilo, doutor?
- Um rinoceronte-alma.
- Um espírito em forma de animal? - disse o aprendiz com indisfarçável mal-estar. Achava que era fantasia dos livros mediúnicos! Meu Deus!
- Narre mais Antero. Preciso de sua visão profunda. Aquele homem de guarda-pó verde-claro parece introduzir as mãos dentro da cabeça daquele rinoceronte. Meu Deus! Que é aquilo?!
- Continue, Antero, não me pergunte nada.
- São excrementos vivos. Espalham-se! Que nojo! Que fedor! Quantos ruídos fazem essas coisas! Estou me sentindo muito mal. Parece que vou desfalecer - Antero caiu literalmente ao chão.
O doutrinador foi levado para a enfermaria do Hospital Esperança e cuidado com carinho. No dia seguinte:
- Antero! Antero! - chamava-lhe na cabeceira o doutor Inácio.
- Ah! O que aconteceu comigo? Tenho muita náusea. Pesadelos sem conta me assaltaram.
- Está tudo bem! É a crise de "já desencarnei".
- O senhor não tem jeito doutor! - falou com extrema dificuldade. Que cena horrível! Em todo meu tempo de doutrinação, mais de quarenta anos, nunca ouvi uma narrativa de tal lugar. Quem são aquelas criaturas?
- São os espíritos assistidos no Centro Espírita de Antonio Crisostomo que o senhor sempre criticou pelos trejeitos adotados.
- Então quer dizer que os médiuns não eram anímicos?
- Apegou-se tanto à forma que não viu os espíritos. Os médiuns daquela casa amam. Por isso fazem o que fazem. Aquela casa realiza o trabalho que tem sido rejeitado pelos "preparados".
- Preparados?
- Os que julgam saber tudo sobre mediunidade e se atolam nos preconceitos e padrões.
- Mas doutor Inácio! E a doutrina?! Como fica?
- Fica como deve ser.
- E como deve ser?
- Livre, criativa, responsável e universal.
- É muito para minha cabeça!
- Sua cabeça precisa mesmo ser cuidada. Como psiquiatra do além, costumo chamar os quadros dos intelectuais da doutrina como loucos pacíficos e controlados. Após a morte, porém, adoram desmaiar.
- Não zombe de mim, doutor Inácio! Nem comecei!
- Vá sé preparando...
- E aquele homem de guarda-pó com as mãos cheias de... Ai, nem quero lembrar! Quem é ele?
- Seu tutor.
- Fale sério, por favor!
- Seu nome é Anísio, o avalista de sua encarnação é mentor do centro que você acusava. Trabalhador exemplar dos abismos. Quando o enviou ao corpo, contava com seu enquadramento nos serviços de amor aos desencarnados. Todavia, o senhor gostava mesmo era de bater papo e fazer catequese de espíritos. Esse o momento de minha chacota: acho que ele está meio cansado de seu palavrório.
Antero não suportou. Chorou como criança ante as revelações novas. Doutor Inácio, afetuosamente, dispensou-lhe atenção, segurando suas mãos. Depois do desabafo, falou:
- Falhei não é, doutor Inácio?
- Nada disso! Perdeu oportunidades! Seu trabalho é reconhecido por aqui. Apenas o senhor tropeçou onde muitos têm tropeçado: cérebro congestionado, pouca ação.
- Explique melhor.
- Muito conhecimento, folha de serviço, tempo de experiência, cargo, tudo isso junto, quando a alma não tem vigilância e maturidade, desemboca em preconceito e presunção, os dois ingredientes de uma das mais típicas patologias da mente: a ilusão.
- Então não terei trabalho aqui?
- Pelo contrário, há muito serviço. Anísio espera toda colaboração espontânea. Você ajudará muito afastando os efeitos nocivos de suas idéias entre aqueles que foram influenciados por suas acusações de purismo filosófico.
- E Anísio? Quando virá me ver.
- Talvez nunca. Ele continua esperando o senhor no trabalho.
- Nos abismos?
- E também no centro espírita que o senhor criticou a vida inteira, pois ele é o Espírito Superior que zela por aquela casa e por Antonio Crisostomo, uma alma querida de seu coração.
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